sexta-feira, 31 de maio de 2013

Para ti

Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida



MIA COUTO, in RAIZ DE ORVALHO E OUTROS POEMAS (Caminho, 2009)

quinta-feira, 30 de maio de 2013

A demora

O amor nos condena:
demoras
mesmo quando chegas antes.
Porque não é no tempo que eu te espero.

Espero-te antes de haver vida
e és tu quem faz nascer os dias.

Quando chegas
já não sou senão saudade
e as flores
tombam-me dos braços
para dar cor ao chão em que te ergues.

Perdido o lugar
em que te aguardo,
só me resta água no lábio
para aplacar a tua sede.

Envelhecida a palavra,
tomo a lua por minha boca
e a noite, já sem voz
se vai despindo em ti.

O teu vestido tomba
e é uma nuvem.
O teu corpo se deita no meu,
um rio se vai aguando até ser mar.


MIA COUTO, in IDADES CIDADES DIVINDADES (Ed. Caminho, 2007)

terça-feira, 28 de maio de 2013

Casa

Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão. . .

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que sem voz me sai do coração.



David Mourão Ferreira
Infinito Pessoal (1959-1962) Obra Poética 1948-1988
4.º Edição Editorial Presença

Só...nhos

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Elegia do Ciúme

A tua morte, que me importa,
se o meu desejo não morreu?
Sonho contigo, virgem morta,
e assim consigo (mas que importa?)
possuir em sonho quem morreu.

Sonho contigo em sobressalto,
não vás fugir-me, como outrora.
E em cada encontro a que não falto
inda me turbo e sobressalto
à tua mínima demora.

Onde estiveste? Onde? Com quem?
— Acordo, lívido, em furor.
Súbito, sei: com mais ninguém,
ó meu amor!, com mais ninguém
repartirás o teu amor.

E se adormeço novamente
vou, tão feliz!, sem azedume
— agradecer-te, suavemente,
a tua morte que consente
tranquilidade ao meu ciúme.


David Mourão-Ferreira, in "Tempestade de Verão"

Memória

Tudo que sou, no imaginado
silêncio hostil que me rodeia,
é o epitáfio de um pecado
que foi gravado sobre a areia.

O mar levou toda a lembrança.
Agora sei que me detesto:
da minha vida de criança
guardo o prelúdio dum incesto.

O resto foi o que eu não quis:
perseguição, procura, enlace,
desse retrato feito a giz
pra que não mais eu me encontrasse.

Tu foste a noiva que não veio,
irmã somente prometida!
— O resto foi a quebra desse enleio.
O resto foi amor, na minha vida.


David Mourão-Ferreira, in "Tempestade de Verão"

Canção Amarga

Que importa o gesto não ser bem
o gesto grácil que terias?
— Importa amar, sem ver a quem...
Ser mau ou bom, conforme os dias.

Agora, tu, só entrevista,
quantas imagens me trouxeste!
Mas é preciso que eu resista
e não acorde um sonho agreste.

Que passes tu! Por mim, bem sei
que hei-de aceitar o que vier,
pois tarde ou cedo deverei
de sonho e pasmo apodrecer.

Que importa o gesto não ser bem
o gesto grácil que terias?
— Importa amar, sem ver a quem...
Ser infeliz, todos os dias!


David Mourão-Ferreira, in "A Secreta Viagem"

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Ter...nura

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Angústia

Tortura do pensar! Triste lamento!
Quem nos dera calar a tua voz!
Quem nos dera cá dentro, muito a sós,
Estrangular a hidra num momento!

E não se quer pensar! ... e o pensamento
Sempre a morder-nos bem, dentro de nós ...
Querer apagar no céu – ó sonho atroz! –
O brilho duma estrela, com o vento! ...

E não se apaga, não ... nada se apaga!
Vem sempre rastejando como a vaga ...
Vem sempre perguntando: “O que te resta? ...”

Ah! não ser mais que o vago, o infinito!
Ser pedaço de gelo, ser granito,
Ser rugido de tigre na floresta!


Florbela Espanca, in "Livro de Mágoas"

Um beijo

Foste o beijo melhor da minha vida,
ou talvez o pior...Glória e tormento,
contigo à luz subi do firmamento,
contigo fui pela infernal descida!
Morreste, e o meu desejo não te olvida:
queimas-me o sangue, enches-me o pensamento,
e do teu gosto amargo me alimento,
e rolo-te na boca malferida.
Beijo extremo, meu prêmio e meu castigo,
batismo e extrema-unção, naquele instante
por que, feliz, eu não morri contigo?
Sinto-me o ardor, e o crepitar te escuto,
beijo divino! e anseio delirante,
na perpétua saudade de um minuto....


Olavo Bilac, in "Poesias"

domingo, 26 de maio de 2013

Queda... de agua

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Amar teus olhos

Podia com teus olhos
escrever a palavra mar.
Podia com teus olhos
escrever a palavra amar
não fossem amor já teus olhos.

Podia em teus olhos navegar
conjugar os verbos dar e receber.
Podia com teus olhos
escrever o verbo semear
e ser tua pele
a terra de nascer poema.

Podia com teus olhos escrever
a palavra além ou aqui
ou a palavra luar,
recolher-me em teus olhos de lua
só teus olhos amar.

Podia em teus olhos perder-me
não fossem, amor, teus olhos,
o tempo de achar-me.


Carlos Melo Santos, in "Lavra de Amor"

Janela do sonho

Abri as janelas
que havia dentro de ti
e entrei abandonado
nos teus braços generosos.

Senti dentro de mim
o tempo a criar silêncio
para te beber altiva e plena.

Mil vezes
repeti teu nome,
mil vezes,
de forma aveludada
e era a chave
que se expunha
e fecundava dentro de mim.

Já não se sonha,
deixei de sonhar,
o sonho é poeira dos tempos
é a voz da extensão
é a voz da pureza
que dardejava na nossa doçura.

Quando abri as tuas janelas
e despi teus braços
perdi a vaidade
e a pressa,
amei a partida
e em silêncio abri,
(sem saber que abria)
uma noite húmida
em combustão secreta
desmaiado no teu ombro
de afrodite.


Carlos Melo Santos, in "Lavra de Amor"

Não sei de amor senão

Não sei de amor senão o amor perdido
O amor que só se tem de nunca o ter
procuro em cada corpo o nunca tido
e é esse que não pára de doer.
Não sei de amor senão o amor ferido
de tanto te encontrar e te perder.

Não sei de amor senão o não ter tido
teu corpo que não cesso de perder
nem de outro modo sei se tem sentido
este amor que só vive de não ter
o teu corpo que é meu porque perdido
não sei de amor senão esse doer.

Não sei de amor senão esse perder
teu corpo tão sem ti e nunca tido
para sempre só meu de nunca o ter
teu corpo que me dóis no corpo ferido
onde não deixou nunca de doer
não sei de amor senão o amor perdido.

Não sei de amor senão o sem sentido
deste amor que não morre por morrer
o teu corpo tão nu nunca despido
o teu corpo tão vivo de o perder
neste amor que só é de não ter sido
não sei de amor senão esse não ter.

Não sei de amnor senão o não haver
amor que dure mais que o nunca tido.
Há um corpo que não pára de doer
só esse é sempre meu de nunca o ser
não sei vde amor senão o amor ferido.

Não sei de amor senão o tempo ido
em que amor era amor de puro arder
tudo passa mas não o não ter tido
o tei corpo de ser e de não ser
só esse é mei por nunca ter ardido
não se de amor senão esse perder.

Cintilante na noite um corpo ferido
só nele de o não ter tido eu hei-de arder
não sei de amor senão amor perdido.



MANUEL ALEGRE, in LIVRO DO PORTUGUÊS ERRANTE (Pub. D. Quixote, 2001)

quinta-feira, 23 de maio de 2013

PAULA FERNANDES - Quero Sim

http://www.youtube.com/watch?v=5BmEszQ_Bwg

Tu e Eu Devíamos Simplesmente Amar-nos

Amor, quantos caminhos para chegar a um beijo,
que solidão errante até chegar a ti!
Os comboios continuam vazios rolando com a chuva.
Em Taltal a primavera não amanheceu ainda.

Mas tu e eu, meu amor, estamos juntos,
juntos da roupa às raízes,
juntos pelo outono, pela água, pelas ancas,
até sermos apenas tu e eu juntos.

Pensar que custou tantas pedras que o rio arrasta,
a embocadura da água do Boroa,
pensar que separados por comboios e nações

tu e eu devíamos simplesmente amar-nos,
com todos confundidos, com homens e mulheres,
com a terra que implanta e educa os cravos.


Pablo Neruda, in "Cem Sonetos de Amor"

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Amo-te sem saber como

Não te amo como se fosses rosa de sal, topázio
ou seta de cravos que propagam o fogo:
amo-te como se amam certas coisas obscuras,
secretamente, entre a sombra e a alma.

Amo-te como a planta que não floriu e tem
dentro de si, escondida, a luz das flores,
e, graças ao teu amor, vive obscuro em meu corpo
o denso aroma que subiu da terra.

Amo-te sem saber como, nem quando, nem onde,
amo-te directamente sem problemas nem orgulho:
amo-te assim porque não sei amar de outra maneira,

a não ser deste modo em que nem eu sou nem tu és,
tão perto que a tua mão no meu peito é minha,
tão perto que os teus olhos se fecham com meu sono.


Pablo Neruda, in "Cem Sonetos de Amor"

Céu estrelado

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Se me esqueceres

Quero que saibas
uma coisa.

Sabes como é:
se olho
a lua de cristal, o ramo vermelho
do lento outono à minha janela,
se toco
junto do lume
a impalpável cinza
ou o enrugado corpo da lenha,
tudo me leva para ti,
como se tudo o que existe,
aromas, luz, metais,
fosse pequenos barcos que navegam
até às tuas ilhas que me esperam.

Mas agora,
se pouco a pouco me deixas de amar
deixarei de te amar pouco a pouco.

Se de súbito
me esqueceres
não me procures,
porque já te terei esquecido.

Se julgas que é vasto e louco
o vento de bandeiras
que passa pela minha vida
e te resolves
a deixar-me na margem
do coração em que tenho raízes,
pensa
que nesse dia,
a essa hora
levantarei os braços
e as minhas raízes sairão
em busca de outra terra.

Porém
se todos os dias,
a toda a hora,
te sentes destinada a mim
com doçura implacável,
se todos os dias uma flor
uma flor te sobe aos lábios à minha procura,
ai meu amor, ai minha amada,
em mim todo esse fogo se repete,
em mim nada se apaga nem se esquece,
o meu amor alimenta-se do teu amor,
e enquanto viveres estará nos teus braços
sem sair dos meus.


Pablo Neruda, in "Poemas de Amor de Pablo Neruda"

Canção final

Oh! se te amei, e quanto!
Mas não foi tanto assim.
Até os deuses claudicam
em nugas de aritmética.
Meço o passado com régua
de exagerar as distâncias.
Tudo tão triste, e o mais triste
é não ter tristeza alguma.
É não venerar os códigos
de acasalar e sofrer.
É viver tempo de sobra
sem que me sobre miragem.
Agora vou-me. Ou me vão?
Ou é vão ir ou não ir?
Oh! se te amei, e quanto,
quer dizer, nem tanto assim.


Carlos Drummond de Andrade

Reflexão

"Dê mais às pessoas, mais do que elas esperam, e faça com alegria. Decore seu poema favorito. Não acredite em tudo que Você ouve, gaste tudo o que Você tem e durma tanto quanto Você queira. Quando disser 'Eu te Amo' olhe as pessoas nos olhos. Acredite em Amor à primeira vista. Nunca ria dos sonhos de outras pessoas. Ame profundamente e com paixão. Você pode se machucar, mas é a única forma de viver a Vida completamente..."

Dalai Lama

O teu riso

Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas
não me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a flor de espiga que desfias,
a água que de súbito
jorra na tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.

A minha luta é dura e regresso
por vezes com os olhos
cansados de terem visto
a terra que não muda,
mas quando o teu riso entra
sobe ao céu à minha procura
e abre-me todas
as portas da vida.

Meu amor, na hora
mais obscura desfia
o teu riso, e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso será para as minhas mãos
como uma espada fresca.

Perto do mar no outono,
o teu riso deve erguer
a sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero o teu riso como
a flor que eu esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
curvas da ilha,
ri-te deste rapaz
desajeitado que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando os meus passos se forem,
quando os meus passos voltarem,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas o teu riso nunca
porque sem ele morreria.


Pablo Neruda, in "Poemas de Amor de Pablo Neruda".

Violeta

Pressiono-te com o olhar
Botão de nada e roxo
Na fofura do verde
Mudo-te a luz
Mato-te a sede
E espero
Desejo
Quero
Que sejas já amanhã
A certeza
A cor
O aroma
A beleza.
E tu, amor, tardas
Demoras
Pedes tempo para a perfeição.
Para abrir a camisa
Anil e lisa
Do teu coração.
Hoje é o dia
Da euforia
Da aclamação
E tu, Flor
Com F grande e todos os estames
Quero que me chames
Com o teu grito amarelo
Ai a música linda
Ai violeta ainda
E sem paralelo



EDGARDO XAVIER, in CORPO DE ABRIGO (Temas Originais, 2011)

terça-feira, 21 de maio de 2013

Lições sobre Chakras

[vimeo 50627396]

Rosa natura...

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Vamos ser velhos ao sol nos degraus da casa

Vamos ser velhos ao sol nos degraus
da casa; abrir a porta empenada de
tantos invernos e ver o frio soçobrar
no carvão das ruas; espreitar a horta
que o vizinho anda a tricotar e o vento
lhe desmancha de pirraça; deixar a
chaleira negra em redor do fogão para
um chá que nunca sabemos quando
será - porque a vida dos velhos é curta,
mas imensa; dizer as mesmas coisas
muitas vezes - por sermos velhos e por
serem verdade. Eu não quero ser velha
sozinha, mesmo ao sol, nem quero que
sejas velho com mais ninguém. Vamos
ser velhos juntos nos degraus da casa -

se a chaleira apitar, sossega, vou lá eu; não
atravesses a rua por uma sombra amiga,
trago-te o chá e um chapéu quando voltar.



MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in POESIA REUNIDA (Quetzal, 2012)

Apelo

Preciso de ti,
chamo-te e não ouves,
ou são os teus ouvidos minerais
como búzios?
Ou perdi eu a voz
com os ventos
em cada onda da tempestade?
Sinto-te como quem apalpa o ar
ou alcança uma nuvem líquida.
Como palmilhar as estrelas
ou querer, sendo cego,
misturar todas as cores do poente?
Sei que estás aí
e és a outra metade do meu corpo.

Não quero ser violentada por palavras agrestes.
Dói-me a ausência
dessa outra parte de mim.


LÍLIA TAVARES, in PARTO COM OS VENTOS (Kreamus, 2013)

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Ironia infantil

Querida Vida: venho fazer-te um pedido um pouco raro.
Ao invés do que costumarás receber, a minha intenção é oposta às de acumulação ou multiplicação.
Claro que me mantenho na casa da sementeira, da rega e frutificação, do depurar e adubar para que sigas latejante, cintilante e renovada.
Acontece, porém — e porque menos é mais — haver algum risco de, à custa de tanto te comemorar e sentir, poder o meu lado esquerdo ter algum susto ou sobressalto que faça vacilar-te nos meus dias.
Assim sendo, e porque te amo, Querida Vida, faz-me só um favorzinho: abranda um bocadinho nas tuas emissões, sim?, para podermos caminhar irmanadas e, eu, ao teu serviço.
Abranda só um bocadinho, antes que eu expluda de... Vida!
.

maria toscano.
Coimbra, 20 Maio / 2013

domingo, 19 de maio de 2013

Tenho tanto sentimento

Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.


Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

Uma mulher de verdade ...

Uma mulher de verdade não precisa de asas, nem combustível.
Para chegar onde quer, ela sobe alto, caminha longe.
Vai ao lugar mais impossível
Não vai amanhã, ela vai hoje.

Uma mulher de verdade não precisa de roupas belas
Não usa máscaras para fingir o que não é e agradar
Ela encanta pela sua essência, sorriso e olhar.
Ela chama atenção porque ela é dela!

Uma mulher de verdade se junta para compartilhar.
Não se anula, não sufoca, não duvida.
Ela sabe amar, doar.
Sabe viver a sua vida.

Uma mulher de verdade se conhece e se permite
Ela ousa, arrisca, ama e se apaixona sem limite
Fala de amor com seu amado
Mostra seus desejos ao eleito de seu lado.

Uma mulher de verdade é uma mulher comum
Ela confia na sua intuição e a segue.
É uma sacerdotisa da lua e
celebra as pequenas coisas de uma forma incomum.

Ela cozinha, fala com os animais e molha suas plantas.
Põe a mão de seu amado entre as suas
E mostra a ele suas curvas e ancas
Mostra seu inferno, o paraíso e todas suas ruas.

Uma mulher de verdade se refaz todo dia.
Embora se refugie dentro de sua boca comprimidos,
o silêncio, seco, sexo, saliva e sofrimento de Maria
Ela renasce Deusa num mundo de reprimidos... todo dia!


Carolina Salcides

Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos

Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as aves que te levam o olhar.
Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.

Porque eu cheguei e é tempo de me veres,
Mesmo que os meus gestos te trespassem
De solidão e tu caias em poeira,
Mesmo que a minha voz queime o ar que respiras
E os teus olhos nunca mais possam olhar.


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in CORAL (Liv. Simões Lopes, 1950), in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)

sábado, 18 de maio de 2013

Poema septuagésimo sétimo

juca
Não te peço perdão. E peço-te
que não me peças perdão. Faz
como os alfarrabistas para quem
não interessam as qualidades de uma obra
mas, e apenas, a sua raridade. Não
me julgues ainda. Deixa que o tempo
se encarregue desse julgamento. Hoje
e amanhã não são o mesmo dia. Todos
os passados já foram futuro, e o futuro
é com esses passados que tem
de construir-se. O próximo futuro.
Porque o futuro longínquo será a soma
dos futuros mais próximos, isto é,
a soma dos passados que hão-de
vir, sem pedir perdão a um futuro
que, exactamente por ser futuro,
não se pode saber se chegará.


JOAQUIM PESSOA, in GUARDAR O FOGO (Ed. Esgotadas, 2013)

Amei-te como na vida se ama uma só vez

Amei-te como na vida se ama uma só vez;
e todos os afetos que dividi depois eram
apenas cinzas que evocavam o brilho dessa
imensa chama. Troquei suspiros e beijos

com muitas outras bocas quando, na minha,
o travo da solidão era uma amarga desculpa
para repartir o pouco que não tinha; mas

em nenhuma quis morder fruto mais
suculento que o silêncio nem permiti que
pousasse sequer o meu nome verdadeiro -
que só nos teus lábios era graça e canção

e eco de loucura. Foi o meu corpo tão vão displicente
naqueles que o cingiram que me faria velha
a tentar recordar-lhes os gestos hesitantes,
as convulsões da pressa e os veios de sal que
descreviam no litoral da pele o aviso de uma
paisagem interior abandonada. Mas de nada

me serviu amar-te assim - pois, ao dizer-te o
que não pude ser longe de ti, digo-te o que sou
e isso há de guardar-te para sempre de voltares.


MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in POESIA REUNIDA (Quetzal, 2012)

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Nenhuma outra Viajará pela Sombra Comigo

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Já és minha. Repousa com teu sono no meu sono.
Amor, dor, trabalhos, devem dormir agora.
Gira a noite em suas rodas invisíveis
e ao meu lado és pura como o âmbar adormecido.

Nenhuma outra, amor, dormirá com meus sonhos.
Irás, iremos juntos pelas águas do tempo.
Nenhuma outra viajará pela sombra comigo,
apenas tu, sempre-viva, sempre sol, sempre lua.

Já tuas mãos abriram os punhos delicados
e deixaram cair suaves signos sem rumo,
teus olhos fecharam-se como duas asas cinzentas,

enquanto eu sigo a água que levas e me leva:
a noite, o mundo, o vento fiam o seu destino,
e sem ti já não sou senão apenas o teu sonho.


Pablo Neruda, in "Cem Sonetos de Amor"

John Lennon - Woman

http://youtu.be/f-x1FsvOAz4

O Sexo

Neste corpo, a densa neblina, quase um hábito,
lentamente descida, sedimento e sede,
subtilmente o acalma. Ancora que se desloca,
movediça e infirme. Só no olhar, além

da luz e da cal, se distinguem os desejos
e a mestria das palavras. E não há remos
nem astros. Convido a neblina a esta
mesa de chumbo, onde nada levanta o fogo

solar ou os signos se alteiam. É a hora
em que o corpo treme e a sombra lavra as frouxas
manhãs. O que serão as tardes, sob a névoa,

quando o vigor agoniza e o vão das águas abre
o caos e os ecos? Estaremos em paz,
usando a palavra, última herdeira das areias.



Orlando Neves, in "Decomposição - o Corpo"

Vertentes

As palavras esperam o sono
e a música do sangue sobre as pedras corre
a primeira treva surge
o primeiro não a primeira quebra

A terra em teus braços é grande
o teu centro desenvolve-se como um ouvido
a noite cresce uma estrela vive
uma respiração na sombra o calor das árvores

Há um olhar que entra pelas paredes da terra
sem lâmpadas cresce esta luz de sombra
começo a entender o silêncio sem tempo
a torre extática que se alarga

A plenitude animal é o interior de uma boca
um grande orvalho puro como um olhar

Deslizo no teu dorso sou a mão do teu seio
sou o teu lábio e a coxa da tua coxa
sou nos teus dedos toda a redondez do meu corpo
sou a sombra que conhece a luz que a submerge

A luz que sobe entre
as gargantas agrestes
deste cair na treva
abre as vertentes onde
a água cai sem tempo


António Ramos Rosa, in “Matéria de Amor”

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Os Teus Beijos, Meu Bem, Tuas Carícias

Os teus beijos, meu bem, tuas carícias,
Teus afagos, teus íntimos abraços,
São apertados nós que dás nos laços
Que prendem nossas ditas vitalícias.

Deixa gabar os deuses co'as delícias
Que disfrutam nos seus etéreos Paços,
Que estas, que nós gozamos por espaços
São, Marília, reais, não são fictícias.

Ora na tua ideia um pouco finge,
S'um prazer imortal que não se altera
As faces divinais com rosas tinge:

Se o chão que em teus olhos reverbera,
Se a ternura sem par que a mim te cinge
Durasse um dia, o sol sua luz perdera.


Francisco Joaquim Bingre, in 'Sonetos'

Anda, Vem

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Anda, vem... por que te négas,
Carne morêna, toda perfume?
Por que te cálas,
Por que esmoreces
Boca vermêlha, - rosa de lume!

Se a luz do dia
Te cóbre de pêjo,
Esperemos a noite presos n'um beijo.

Dá-me o infinito goso
De contigo adormecer,
Devagarinho, sentindo
O arôma e o calôr
Da tua carne, - meu amôr!

E ouve, mancebo aládo,
Não entristeças, não penses,
- Sê contente,
Porque nem todo o prazer
Tem peccado...

Anda, vem... dá-me o teu corpo
Em troca dos meus desejos;

Tenho Saudades da vida!

Tenho sêde dos teus beijos!


António Botto, in 'Canções'

terça-feira, 14 de maio de 2013

Gata

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Houve uma Ilha em Ti

Houve uma ilha em ti que eu conquistei.
Uma ilha num mar de solidão.
Tinha um nome a ilha onde morei.
Chamava-se essa ilha Coração.

Que saudades do tempo que passei.
Nenhum desses momentos foi em vão.
Do teu corpo, de ti, já nada sei.
Também não sei da ilha, não sei, não.

Só sei de mim, coberto de raízes.
Enterrei os momentos mais felizes.
Vivo agora na sombra a recordar.

A ilha que eu amei já não existe.
Agora amo o céu quando estou triste
por não saber do coração do mar.



Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'

Amei Demais

Madruguei demais. Fumei demais. Foram demais
todas as coisas que na vida eu emprenhei.
Vejo-as agora grávidas. Redondas. Coisas tais,
como as tais coisas nas quais nunca pensei.

Demais foram as sombras. Mais e mais.
Cada vez mais ardentes as sombras que tirei
do imenso mar de sol, sem praia ou cais,
de onde parti sem saber por que embarquei.

Amei demais. Sempre demais. E o que dei
está espalhado pelos sítios onde vais
e pelos anos longos, longos, que passei

à procura de ti. De mim. De ninguém mais.
E os milhares de versos que rasguei
antes de ti, eram perfeitos. Mas banais.


Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'

Lembra-te

Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos


Mário Cesariny, in "Pena Capital"

Dois Amantes, o Mundo

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dois amantes, o mundo
cada um no seu reino, beijam-se nas praias
quando as ondas batem as areias

o mar é o meu navio,
hoje naufrago feliz

sabes quem sou, as dunas
que se levantam com o vento são
os sonhos do amor que dormita
em sossego nas praias

a terra és tu o mar sou eu



Jorge Reis-Sá, in "A Palavra no Cimo das Águas"

A Eterna Ausência

Eu aguardei com lágrimas e o vento
suavizando o meu instinto aberto
no fumo do cigarro ou na alegria das aves
o surgimento anónimo
no grande cais da vida
desse navio nocturno
que me trazia aquela com lábios evidentes
e possuindo um perfil indubitável,
mulher com dedos religiosos
e braços espirituais...

Aquela mulher-pirâmide com chamas pelo corpo
e gritos silenciosos nas pupilas.

Amante que não veio como a noite prometera
numa suspensa nuvem acordar
meu coração de carne e alguma cinza...

Amante que ficou não sei aonde
a castigar meus dias involúveis
ou a afogar meu sexo na caveira
deste carnal desespero!...


António Salvado, in "A Flor e a Noite"

Desespero

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Não eram meus os olhos que te olharam
Nem este corpo exausto que despi
Nem os lábios sedentos que poisaram
No mais secreto do que existe em ti.

Não eram meus os dedos que tocaram
Tua falsa beleza, em que não vi
Mais que os vícios que um dia me geraram
E me perseguem desde que nasci.

Não fui eu que te quis. E não sou eu
Que hoje te aspiro e embalo e gemo e canto,
Possesso desta raiva que me deu

A grande solidão que de ti espero.
A voz com que te chamo é o desencanto
E o esperma que te dou, o desespero.


Ary dos Santos, in 'Liturgia do Sangue'

Meu amor que te foste sem te ver

Meu amor que te foste sem te ver
que de mim te perdeste sem te amar
quem sabe se outra vida tu vais ter
ou se tudo se perde sem voltar

ou se é dentro de mim que tem de haver
tanta força no meu imaginar
que o poeta que é Deus o vá reter
e te dê vida e faça regressar

para de novo o sonho desfazer
num contínuo surgir e retornar
ao nada que dá ser ao que é querer
ao fado que só dá para se dar

por tudo estou amor e merecer
o que venha para eu te relembrar
só adorando o nada pretender
só vogando nas águas de aceitar.


Agostinho da Silva, in 'Poemas'

domingo, 12 de maio de 2013

O teu riso

485133_426119337472354_8489049_nTira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas
não me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a flor de espiga que desfias,
a água que de súbito
jorra na tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.

A minha luta é dura e regresso
por vezes com os olhos
cansados de terem visto
a terra que não muda,
mas quando o teu riso entra
sobe ao céu à minha procura
e abre-me todas
as portas da vida.

Meu amor, na hora
mais obscura desfia
o teu riso, e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso será para as minhas mãos
como uma espada fresca.

Perto do mar no outono,
o teu riso deve erguer
a sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero o teu riso como
a flor que eu esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
curvas da ilha,
ri-te deste rapaz
desajeitado que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando os meus passos se forem,
quando os meus passos voltarem,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas o teu riso nunca
porque sem ele morreria.


Pablo Neruda

Canto do estrangeiro

Viria como um rei
Se fosse por vontade tua —
Tão remoto no tempo
Da tua vida
Que nem te tocasse —
Viria com a alvorada,
Quase miragem debuxada
De uma ave
Sobrevoando a tua história.

Sem te possuir
Nem te pertencer,
Para o teu prazer um aceno
O mais natural
Seria o meu sinal no longe,
Isento de paixões
E cheio de glória:

Nada semelhante
À paz que sucede as guerras
No regresso de um Ulisses
Vagabundo,
Exausto de triunfo, como eu
Que penetro o teu mundo
Envolto em sombra
E para sempre me despeço
Ao desfiar a púrpura
Que a espera pôs
Nas tuas pálpebras.


Ianelli, Mariana, In Treva Alvorada, São Paulo: Iluminuras, 2010, p. 63.

sábado, 11 de maio de 2013

Última volta

Completo a última volta
dos teus olhos.
Equilibro o teu rosto suave
na seda que desliza.

A minha sede é um círculo
de luz que me entregaram a beber.
O suor da minha saliva é uma estrela
que se espuma no presente.

Não quero imaginar o nada
que serias sem mim…
Eu sem ti sou tudo mais.

Não vou dormir enquanto
não acordar à tua porta.


CLÁUDIO CORDEIRO, in UM TUDO NADA ÁGUA (Lua de Marfim, 2012)

Os silêncios da fala

São tantos
os silêncios da fala
De sede
De saliva
De suor
Silêncios de silex
no corpo do silêncio
Silêncios de vento
de mar
e de torpor
De amor
Depois, há as jarras
com rosas de silêncio
Os gemidos
nas camas
As ancas
O sabor
O silêncio que posto
em cima do silêncio
usurpa do silêncio o seu magro labor.


MARIA TERESA HORTA, in VOZES E OLHARES NO FEMININO (Ed, Afrontamento, Porto, 2001)

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Magia enfeitiçada

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Sou magia
Sou feitiço
Alma aprisionada
Corpo de deleite
Eternamente apaixonada
Sou cristal
Sou pérola
Sou enfeite
Sou verso silenciado
Sou magia enfeitiçada
Tenho no peito um cadeado
Sou um silêncio magoado
Sou quem sente calada
Sou esquiço
Sou tela
Sou produto final
Sou esta, sou aquela
Sou paixão, sou amor,
Sou musa inspiradora
Sou coisa e tal
Sou diferente
Sou eterna seguidora
Corpo adormecido e dolente
Apaixonado sempre
Sou eterna sonhadora
E sonho e espero
E aguardo pelo fim
E sonhando desespero
Neste leito de carmim
Sou solidão descendo enfim
Sou paixão e sou desejo
Sou vestido de cetim
Sou carinho, sou ensejo
Numa paixão desenfreada
Sou magia enfeitiçada
Sou musa…e não sou nada...


SÃO REIS, in PALAVRAS NOSSAS - COLECTÂNEA DE NOVOS POETAS PORTUGUESES (Esfera do Caos, 2011)

domingo, 5 de maio de 2013

Condenado

http://youtu.be/kcWJ9TQ0P-0

Amarrotamos o pano-cru
que reveste o nosso leito
e deixo que o meu peito nu
vista a nudez do teu peito.

E fica a minha pele
colada na tua pele,
em bagas de lume, a transpirar,
até sentir, sem queixume, o teu corpo
apaixonar-se pelo meu corpo,
devagar, bem devagar…

E sinto o meu corpo tremer
ao sentir-te estremecer por dentro
e mil aves abrem asas ao vento
no sereno reflexo de um amanhecer.

E a tua pele…
E a minha pele…
A nossa pele…

Embalo em ti levado pelas marés
descobrindo quem és por dentro
inebriado num arrepio lento
que me percorre de lés a lés.

Queria deter este instante,
deixar cada segundo em suspenso
como o mundo que lá fora nos rodeia,
e ficar exilado em ti, condenado,
despudoradamente nu e apaixonado,
tendo o teu corpo por cadeia.


JOÃO MORGADO , in RIO DE DOZE ÁGUAS, 12 POETAS (Coisas de Ler, 2012)

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Ser pássaro

Ansiava ser pássaro,
Voar e planar,
Libertar e sentir,
Sem nunca pousar.

No cume mais alto,
Meu ninho estaria,
Doce a amarga solidão
Que a verdade libertaria...

Vivendo sem tempo,
Nun chilrear em melodia,
Nesse sonho feito de vento,
Jamais voltaria

Ser gente dói,
Seca e magoa.
Ser gente corrói
Cá dentro…e o eco soa!


ALEXANDRA MARQUES, in A VOZ DO SILÊNCIO (Edições Esgotadas, 2011)

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Veste-me a seda

13 - 1
Veste-me a seda
das tuas mãos
serenas
Veste-me a roupa quente da tua pele
e aperta-me com o cinto dos teus braços
no lugar onde o meio traz cansaços
Evita que na ausência de ti gele

Recorta-me
em pequenos pedaços
Ata-me em laços
e guarda-me no coração
antes de saíres para o mundo
e bater no fundo
da traição que te apetece


EDGARDO XAVIER, in AMOR DESPENTEADO (Casa das Cenas, 2007)

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos

Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos
e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo
doeu-me onde antes os teus dedos foram aves
de verão e a tua boca deixou um rasto de canções.

No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha
camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração
que era o resto da vida - como um peixe respira
na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida

foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti
é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara
um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo
um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama

e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos,
mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota
as forças, são frios os batentes nas portas da manhã.


MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, in O CANTO DO VENTO NOS CIPRESTES (2001), in POESIA REUNIDA Quetzal, 2012)