sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Beijos

Há beijos que por si sós pronunciam
a sentença de amor condenatória,
há beijos que se dão com o olhar
há beijos que se dão com a memória.

Há beijos silenciosos, beijos nobres
há beijos enigmáticos, sentidos
há beijos que só são dados pelas almas
há beijos verdadeiros, porque proibidos.

Há beijos que calcinam e que ferem,
há beijos que arrebatam os sentidos,
há beijos misteriosos que sugerem
mil sonhos errantes e perdidos.

Há beijos problemáticos que escondem
um segredo que nunca decifraram,
há beijos que engendram a tragédia
de quantos botões de rosa desfolharam.

Há beijos perfumados, beijos tíbios
que palpitam nos íntimos desvelos,
há beijos que nos lábios deixam pegadas
como um campo de sol entre dois gelos.

Há beijos que parecem açucenas
de tão sublimes, ingénuos, de tão puros,
há beijos de traição e cobardia,
há beijos malditos e perjuros.

Judas beija Jesus e deixa impressa
em seu rosto divino a felonia,
enquanto Madalena com seus beijos
deixa força e piedade na agonia.

Desde então nos beijos centelham
o amor, a traição e as dores,
e nas bodas humanas se assemelham
à brisa que passa pelas flores.

Há beijos que provocam desvario
de amorosa paixão ardente e louca,
bem os conheces, são os beijos a fio
que eu inventei para a tua boca.

Beijos de chama que em rasto impresso
sulcos de um amor vedado levaram,
beijos de tempestade, selvagens beijos
que só os nossos lábios provaram.

Recordas o primeiro? Indefinível;
cobriu o teu rosto até corar
e nos espasmos de emoção terrível,
encheu-se de lágrimas o teu olhar.

Recordas-te de uma tarde, do louco instante
em que te vi com zelo e pensamentos sábios,
te abracei… o beijo vibrante,
e que viste depois? Sangue nos meus lábios.

Ensinei-te a beijar: os frios beijos
são de impassível coração de roca,
eu ensinei-te a beijar com os beijos
que eu inventei para a tua boca


GABRIELA MISTRAL, in DESOLACIÓN (1922), tradução de CARLOS CAMPOS

Raio... de luz

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domingo, 10 de novembro de 2013

Grita

AMOR, quando chegares na fonte distante,
cuida para não me morder com voz de sonho:
para que a minha dor não morra nas tuas asas,
que na garganta de ouro a minha voz não se afogue.

Amor – quando chegares
na fonte mais distante,
sê turbilhão que assola,
sê rompante que crava.

Amor, desfaz o ritmo
da minha água tranquila:
saibas tu ser a dor que retine e que sofre,
saibas tu ser a angústia que retorce e grita.

Não seja eu esquecido
não me dês a ilusão.
Porque todas as folhas que caíram na terra
Foram tingindo de ouro meu coração.

Amor – quando chegares
na fonte mais distante,
desvia minhas vertentes,
crispa as minhas entranhas.
E assim uma tarde – Amor que tens as mãos cruéis –,
ajoelharei ante ti e te darei graças.


- Pablo Neruda, in: Crepusculário - tradução de José Eduardo Degrazia

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

O ruído da mentira

Nos teus olhos vejo
O ruído da mentira
Minimizando o valor real
Da verdade
Para que possas dormir
Com alguma tranquilidade.

Pintas de claro cinzento
A escuridão dos actos
Para te convenceres
(porque já não convences ninguém)
Que o que foi escrito
Não era para ofenderes.

Defendes a maldade
(Na vergonha perdida)
Na tentativa de camuflar
A importância da história
Que viveste e de que não queres
Memória.



Fuga na imagem distorcida
Duma realidade não suportada
Pelos teus mais profundos valores
Resultando numa desgastada
Cobardia sem arrependimento
De vítima mascarada.



Maria Sousa

domingo, 3 de novembro de 2013

Quási

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d'asa...
Se ao menos eu permanecesse àquem...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dôr! - quási vivido...

Quási o amor, quási o triunfo e a chama,
Quási o princípio e o fim - quási a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
- Ai a dôr de ser-quási, dor sem fim... -
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos d'alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ansias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indicios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sôbre os precipícios...

Num impeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...






Um pouco mais de sol - e fôra brasa,
Um pouco mais de azul - e fôra além.
Para atingir, faltou-me um golpe de aza...
Se ao menos eu permanecesse àquem...


Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão'

Vaidade, tudo vaidade!

Vaidade, meu amor, tudo vaidade!
Ouve: quando eu, um dia, for alguem,
Tuas amigas ter-te-ão amizade,
(Se isso é amizade) mais do que, hoje, têm.

Vaidade é o luxo, a gloria, a caridade,
Tudo vaidade! E, se pensares bem,
Verás, perdoa-me esta crueldade,
Que é uma vaidade o amor de tua mãe...

Vaidade! Um dia, foi-se-me a Fortuna
E eu vi-me só no mar com minha escuna,
E ninguem me valeu na tempestade!

Hoje, já voltam com seu ar composto,
Mas eu, ve lá! eu volto-lhes o rosto...
E isto em mim não será uma vaidade?


António Nobre, in 'Só'

Poema para ingrata

Tu, menosprezas
Quem te presa
Maltratas
Quem te trata,
Ignoras
Quem te prioriza
Tem corizas
De poesia,
Bates
Em que te afaga,
Calas
Teus amantes,
Beijas
Militantes
De uma guerra
Da terra mãe
Perdida...
Quem de nós
Está errado
A mim,
Por te desejar,
Você,
Por me desertar?
Tu, um dia
Quem diria
Quem dirá,
Que vai sofrer
E vai chorar
Amargamente
Francamente...
Não é maltrato,
Tampouco fracasso
Nem maldição
É a justiça
De própria mão.
Mão do passado
Que nunca ouviste
Mão do presente
Que bem viste
Anunciar
Ao futuro cego
Que preparaste
Por que paraste
E não sentiste...



Diego Duarte

Nascente...

24.08.2013 - 1

Para não deixar de amar-te nunca

Saberás que não te amo e que te amo
pois que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem a sua metade de frio.

Amo-te para começar a amar-te,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de amar-te nunca:
por isso não te amo ainda.

Amo-te e não te amo como se tivesse
nas minhas mãos a chave da felicidade
e um incerto destino infeliz.

O meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
e por isso te amo quando te amo.


Pablo Neruda, in "Cem Sonetos de Amor"

A Infinita

Vês estas mãos? Mediram
a terra, separaram
os minerais e os cereais,
fizeram a paz e a guerra,
derrubaram as distâncias
de todos os mares e rios
e, no entanto,
quando te percorrem
a ti, pequena,
grão de trigo, calhandra,
não conseguem abarcar-te,
fatigam-se ao agarrar
as pombas gémeas
que repousam ou voam no teu peito,
percorrem as distâncias das tuas pernas,
enrolam-se na luz da tua cintura.
Para mim tu és tesouro mais rico
de imensidade do que o mar e seus cachos
e és branca e azul e extensa como
a terra nas vindimas.
Nesse território,
desde os pés à fronte,
andando, andando, andando,
passarei a vida.


Pablo Neruda, in "Os Versos do Capitão"

Um corpo que se ama

Para quem o deseja e quem o ama
um corpo é sempre belo no seu esplendor
e tudo nele é belo porque é sagrado
e, mesmo na mais plena posse, inviolável.

Um corpo que se ama é uma nascente viva
que de cada poro irrompe irreprimivel
e toda a sua violência é a energia ardente
que gerou o universo e a fantasia dos deuses.

Tudo num corpo que se ama é adorável
na integridade viva de um mistério
na evidência assombrosa da beleza
que se nos oferece inteiramente nua.

Não há visão mais lucida do que a do desejo
e só para ela a nudez é sagrada
como uma torrente vertiginosa ou uma oferenda solar.
Esse olhar vê-o inteiro na perfeição terrestre.


ANTÓNIO RAMOS ROSA, in A ROSA INTACTA (Edição Labirinto, 2007)

Não sei, amor, sequer, se te consinto

Não sei, amor, sequer, se te consinto
ou se te inventas, brilhas, adormeces
nas palavras sem carne em que te minto
a verdade intemida em que me esqueces.

Não sei, amor, se as lavas do vulcão
nos lavam, veras, ou se trocam tintas
dos olhos ao cabelo ou coração
de tudo e de ti mesma. Não que sintas

outra coisa de mais que nos feneça;
mas só não sei, amor, se tu não sabes
que sei de certo a malha que nos teça,

o vento que nos leves ou nos traves,
a mão que te nos dê ou te nos peça,
o princípio de sol que nos acabes.



PEDRO TAMEN, in TÁBUA DAS MATÉRIAS - POESIA 1956-1991 (Tertúlia, 1991)

Ternura

!!ClaraCamargo

Desvio dos teus ombros o lençol
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do Sol,
quando depois do Sol não vem mais nada

Olho a roupa no chão que tempestade!
há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
em que uma tempestade sobreveio…

Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo

Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!


DAVID MOURÃO FERREIRA, in INFINITO PESSOAL OU A ARTE DE AMAR, (Guimarães Ed., 1963)

Palavras minhas

Palavras que disseste e já não dizes,
palavras como um sol que me queimava,
olhos loucos de um vento que soprava
em olhos que eram meus, e mais felizes.

Palavras que disseste e que diziam
segredos que eram lentas madrugadas,
promessas imperfeitas, murmuradas
enquanto os nossos beijos permitiam.

Palavras que dizias, sem sentido,
sem as quereres, mas só porque eram elas
que traziam a calma das estrelas
à noite que assomava ao meu ouvido...

Palavras que não dizes, nem são tuas,
que morreram, que em ti já não existem
- que são minhas, só minhas, pois persistem
na memória que arrasto pelas ruas.


PEDRO TAMEN, in TÁBUA DAS MATÉRIAS - POESIA 1956-1991 (Tertúlia, 1991)

Pode o Céu Ser Tão Longe - Pedro Abrunhosa

Paixão

Podia escrever o teu nome num vidro embaciado ou
segredá-lo a uma borboleta negra.

Podia cortar os pulsos e deixar o sangue correr até que
o mar ficasse vermelho.

Ou beijar-te os pés. Mas esse gesto está reservado
desde o princípio dos séculos e teria o sabor de uma
profanação.


JORGE DE SOUSA BRAGA, in O POETA NU (Lisboa, Fenda Ed., 1999)