quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Residuos

Resta-me a fragrância da tua pele
em mim colada, à exaustão
dos dias que se escoaram
por entre os dedos finos da minha mão.

A noite veio e desvirgindou
todo o pudor que ali morreu
por entre sonhos já vividos,
e tantos outros que ninguém sonhou!

Ah! como pesa a tua ausência
neste silêncio feito pedra!
Traz-me a voz que murmura cânticos
que vagam nas ondas da minha essência.

Não vivo já, espectro de mim
dorme acordado em ténue vigília...
Vem madrugada, vem de uma vez
e traz de volta a noite e outro dia assim.

Dói-me o corpo inteiro, retoco a alma
retalhos do meu triste deambular.
Hoje, não sou ninguém, esqueci a calma
quero apenas dormir para não mais acordar !


Carmen Sêco

U2 - With Or Without You

http://www.youtube.com/watch?v=XmSdTa9kaiQ&feature=relmfu

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Nocturno

Amor, não sei de coisa mais violenta
que ficar de noite à tua espera.
É triste como uma manhã cinzenta
destruindo o coração da primavera.

E aqui, como um pássaro deitado,
julgando ouvir na chuva a tua voz,
a madrugada deita-se a meu lado
fingindo que na cama estamos nós.

Mas eu sinto chegar esta amargura
que vem fechar-me os olhos. E depois,
já nem sei se é um sonho ou se é loucura:
no quarto onde estou só, ficamos dois.

E nada mais me importa, já não espero
aquela que enche a noite de alegria.
Então, para dizer quanto te quero,
eu faço amor contigo até ser dia.

Joaquim Pessoa

De joelhos

«Bendita seja a Mãe que te gerou.»
Bendito o leite que te fez crescer.
Bendito o berço aonde te embalou
A tua alma, pra te adormecer!

Bendita essa canção que acalentou
Da tua vida o doce alvorecer...
Bendita seja a Lua, que inundou
De luz, a Terra, só para te ver...

Benditos sejam todos que te amarem,
As que em volta de ti ajoelharem
Numa grande paixão fervente e louca!

E se mais que eu, um dia, te quiser
Alguém, bendita seja essa Mulher,
Bendito seja o beijo dessa boca!!

Florbela Espanca

Miriam Makeba - Pata Pata (live 2006) HQ

http://www.youtube.com/watch?v=E0Oj6ScoL_M&feature=related

O teu desenho

Aprendi a desenhar-te,
sem te ver,
sem querer,
sem te conhecer,

Mas a tua voz,
adivinha-te os traços,
Guia-me no riscar
das tuas linhas,
Ajuda-me a encontrar-te
as sombras,
A apagar-te os defeitos
a medir-te os espaços,

E quando já não falas,
me apareces,
em figura esboçada,
como silhueta,
como esfinge,
como beleza desenhada.


José Gabriel Duarte

Muitas vezes te esperei, perdi a conta

Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
- tanto pó sobre os móveis tua ausência.

Se não és tu, que me importa?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.

Fernando Assis Pacheco

Zulu Song - Miriam Makeba

http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=k27LiD3YDZ4#!

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Ode a Eros

Eros, Cupido, Amor, pequeno Deus travesso
Com quem todos brincamos!
Brincando nos ferimos,
Ferindo-nos gozamos,
Se rimos já choramos,
Mal que choramos rimos...
Já, voltados do avesso,
Por igual o voltamos,
O torturamos nós como ele nos tortura,
Descemos aos recessos da criatura...

Pequenino gigante!
Sonhava, ou não sonhava,
Quem te representou risonho e pequenino
Que de Hércules a clava
Não pesa como pesa a tua mão de infante,
Nem seu furor destrói
Como nos dói
Teu riso de menino?

Nas tuas leves setas
Nas flâmulas gentis
Que cantam os poetas
E os namorados juvenis,
Que longos ópios e letais licores,
Que pântanos de lodo e que furores,
Que grinaldas de louros e de espinhos,
Que abissais labirintos de caminhos!

Mascarilha de seda e de veludo
Sob a qual o olhar brilha, a boca ri,
Que olhar ambíguo ou mudo,
Que boca atormentada
Não terás além ti
Na mascarada?

Pai da Crueldade e da Piedade,
Filho do Crime e da Beleza,
Que infante serás tu, que, desde que há Idade,
Aos Ícaros opões a mesma astral parede,
E os Lázaros susténs dos restos dessa mesa
Em que se bebe sempre a mesma sede,
Se come
A mesma fome?

Divindade nocturna
Que te cinges de rosas,
Suprema fúria mascarada
Que a porta abres do céu... escancarada
Sobre o negro vazio duma furna,
Que a urna de cristal nas mãos formosas
Vens ofertar às bocas sequiosas
E escorres sangue do cristal da urna,
Que tens tu afinal, ao fundo da caverna
Sempre aos mortais vedada:
A eterna morte... o nada,
Ou a vida eterna?


José Régio

Vem comigo

vem comigo
ver as pirâmides fantásticas do vento
no interior luminoso da terra encontrarás
o segredo de quartzo para desvendares o tempo
onde contemplamos a fulva doçura das cerejas

iremos para onde os restos de vida não acordem
a dor da imensa árvore a sombra
dos cabelos carregados de pólenes e de astros
crescemos lado a lado com o dragão
o súbito relâmpago dos frutos amadurecendo
iluminará por um instante as águas do jardim
e o alecrim perfumará os noctívagos passos
há muito prisioneiros no barro
onde o rosto se transforme e morre
e já não nos pertence

vem comigo
praticar essa arte imemorial de quem espera
não se sabe o quê junto à janela
encolho-me
como se fechasse uma gaveta para sempre
caminhasse onde caiu um lenço
mas levanto os olhos
quando o verão entra pelo quarto e devassa
esta humilde existência de papel

vem comigo
as palavras nada podem revelar
esqueci-as quase todas onde vislumbro um fogo
pegando fogo ao corpo mais próximo do meu


Al Berto

Amor Electro - A Máquina

http://www.youtube.com/watch?v=tnBccuIDTTw

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Vida

Já perdoei erros quase imperdoáveis,
tentei substituir pessoas insubstituíveis
e esquecer pessoas inesquecíveis.

Já fiz coisas por impulso,
já me decepcionei com pessoas
que eu nunca pensei que iriam me decepcionar,
mas também já decepcionei alguém.

Já abracei pra proteger,
já dei risada quando não podia,
fiz amigos eternos,
e amigos que eu nunca mais vi.

Amei e fui amado,
mas também já fui rejeitado,
fui amado e não amei.

Já gritei e pulei de tanta felicidade,
já vivi de amor e fiz juras eternas,
e quebrei a cara muitas vezes!

Já chorei ouvindo música e vendo fotos,
já liguei só para escutar uma voz,
me apaixonei por um sorriso,
já pensei que fosse morrer de tanta saudade
e tive medo de perder alguém especial (e acabei perdendo).

Mas vivi!
E ainda vivo!
Não passo pela vida.
E você também não deveria passar!


Viva!!

Bom mesmo é ir à luta com determinação,
abraçar a vida com paixão,
perder com classe
e vencer com ousadia,
porque o mundo pertence a quem se atreve
e a vida é muito para ser insignificante.

Augusto Branco

As palavras que eu digo

As palavras que eu digo
sobre o aroma das flores
são palavras às cores,
que na minha alma respiro
e é nelas que cheiro,
que recordo e que vivo.

Como marinheiro em terra preso,
em minha mente navego
nas memórias agitadas
por vagas de pensamentos
levadas pelos ventos
à terra dos sentimentos
no coração atracado.

Cada porto de abrigo
é uma história que se conta
de um homem nascido,
tendo tudo vivido
que se faz das palavras que eu digo.

José Maria Almeida

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Amo-te, Amor!

Chegas-me
nos sorrisos que lançaste
das janelas fechadas
entre olhares furtivos
trocados na madrugada
enquanto todos dormiam
o nosso sonho encantado.

Chegas-me
no aroma que deixaste
naquela flor murcha
que abandonaste
à porta da minha casa
naquele dia que te foste
e mais nada deixaste.

Chegas-me
na letra desenhada
daquela carta que escreveste
e onde me disseste
porque me abandonaste
sozinho no espaço
da cama que criaste.

Não, não te foste ainda embora
pois na tristeza da memória
que em mim deixaste
sinto ainda o amor
que nunca abandonaste
como uma flor
que vive em mim.

José Maria Almeida

Ronny Jordan - So What

http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=4B5Q6HH8DbI#!

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Guerra Civil

É contra mim que luto.
Não tenho outro inimigo.
O que penso
O que sinto,
O que digo
E o que faço
É que pede castigo
E desespera a lança no meu braço.

Absurda aliança
De criança
E adulto,
O que sou é um insulto
Ao que não sou;
E combato esse vulto
Que à traição me invadiu e me ocupou.

Infeliz com loucura e sem loucura,
Peço à vida outra vida, outra aventura,
Outro incerto destino.
Não me dou por vencido,
Nem convencido.
E agrido em mim o homem e o menino.

Miguel Torga

domingo, 4 de dezembro de 2011

Sou de outras coisas

Sou de outras coisas
pertenço ao tempo que há-de vir sem ser futuro
e sou amante da profunda liberdade
sou parte inteira de uma vida vagabunda
sou evadido da tristeza e da ansiedade

Sou doutras coisas
fiz o meu barco com guitarras e com folhas
e com o vento fiz a vela que me leva
sou pescador de coisas belas, de emoções
sou a maré que sempre sobe e não sossega

Sou das pessoas que me querem e que eu amo
vivo com elas por saber quanto lhes quero
a minha casa é uma ilha é uma pedra
que me entregaram num abraço tão sincero

Sou doutras coisas
sou de pensar que a grandeza está no homem
porque é o homem o mais lindo continente
tanto me faz que a terra seja longa ou curta
tranco-me aqui por ser humano e por ser gente

Sou doutras coisas
sou de entender a dor alheia que é a minha
sou de quem parte com a mágoa de quem fica
mas também sou de querer sonhar o novo dia

Fernando Tordo

il Divo - Regresa A Mi

http://www.youtube.com/watch?v=Yay4W9hkJJM