terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Livro Aberto

Quero que tenhas muitas páginas
E versos difíceis de entender
Quero que me digas onde vais
E que nada fique por dizer...

Sei que não há lugares eternos.
Esta cadeira tem horas,
Há ficar e partir...
Há um entardecer
Para os vagares e demoras.
Até pode chover...

Abre e diz-me a teu jeito
Essa página, e outra, e outra,
Mas não, não me toques ainda.

Assim aberto
Fica
Perto
Mas não me toques ainda.

Deixa-me ler até ao fim.
Com os olhos, com o peito
Antes que o vento
Vire a página da decisão.

Quero ser eu
A tocar essas páginas
Que vou ler e anotar.
Mas por agora, quero ler-te
Só ler-te.

Quero amar-te devagar.


CARLOS CAMPOS, in RIO DE DOZE ÁGUAS (Coisas de Ler, 2012)

Fica

O que te assusta afinal? O susto? Ou o final?
Estamos aqui e agora. P'ra mim basta.
Basta-me saber-nos aqui e agora: querer - querer muito.
Quero-te.
Toco-te. Não. Não basta. Tenho de te ter: aqui e agora.
De me ser. Sem demora.
No vazio de ti - cheio de mim. Farto. Repleta em ti - completo em mim.
Perto.
Início, meio e fim. Momento.
É isto que sou. Não me vou. Fico.
Fica, enquanto podes. Fica. Fica.
O tempo assim o dita.
E, na verdade, só o tempo fica.


CONCEIÇÃO SOUSA, in PONTAS SOLTAS: NÓS (edição de autora, Julho 2011)

Esboço

Desenho o esboço
do teu corpo
no meu modo imaginário
de ser,
doce
redondo
dado.
São traços da minha forma
de te querer,
detalhes
que as nossas cartas jogam
E do que sabes
E do que sei,
são as coisas que trocamos.
os traços seguem as linhas,
pecados desta linha
que nos separa,
nos torna virtuais.
E quando me pedes
que me dê de ti
é para mim que voltas
nesse amor frágil,
inconsolável
de te ter longe
aqui mesmo ao pé de mim.


JORGE BICHO, in POR DENTRO DAS PALAVRAS (Lua de Marfim, 2011)

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Gosto de Ti (Realmente) - Corações de Atum

Escrevo-te a sentir tudo isto

escrevo-te a sentir tudo isto
e num instante de maior lucidez poderia ser o rio
as cabras escondendo o delicado tilintar dos guizos nos sais de prata da
fotografia
poderia erguer-me como o castanheiro dos contos sussurrados junto
ao fogo
e deambular trémulo com as aves
ou acompanhar a sulfúrica borboleta revelando-se na saliva do lábios
poderia imitar aquele pastor
ou confundir-me com o sonho de cidade que a pouco e pouco morde a
sua imobilidade

habito neste país de água por engano
são-me necessárias imagens radiografias de ossos
rostos desfocados
mãos sobre corpos impressos no papel e nos espelhos
repara
nada mais possuo
a não ser este recado que hoje segue manchado de finos bagos de romã
repara
como o coração de papel amareleceu no esquecimento de te amar


AL BERTO, in O MEDO (1987)