domingo, 28 de abril de 2013

ESCREVE. ME!

escreve-me, cada vez mais, sempre: escreve-me
não páres essa filigrana que ainda agora se abre em meu peito
não mates esse caudal que há alguns séculos foi desfeito
para nos virmos encontrar, aqui, no dúplice espaço do olhar.
escreve-me, por mais estranho que seja o verbo
escreve-me, por mais raro que seja o verso
por mais imprevisto o silêncio
mais raro e feliz adversário da rotina
verso do aprender a viver a ser o dia.
começa pelo A
desde os meus cabelos em fogo e os ansiosos ombros
por uma e outra mão certas justas no limite das coxas
a descerem vertiginosas, duas vertigens até ao chão.
continua com o B
a rondar-me, de perfil, ventre e peito
a encontrar o melódico acordo cromático
do redondo talhado em colo profundo
aberto C.
aqui se recolhem os líquidos da sede morna
à espera da ceifa doce — na espera pela safra doce
pela suada colheita de tão mútua doce —
entre corpos desejada entre corpos acertada
até derivar, do entre-corpo, uma só fronteira
única vigia de ondas vivas de onde
se afirma o D
em contramão, falso promontório, meio-monte
provocador dos contrários e suas leis, físicas.
entrelaçadas pernas ágeis, afagos esbracejados
fingem-se em E
fundem-se em F
contorcem-se em G,
durante H instantes sorvidos na eterna lentidão.

atingiremos, então, uma pausa de I, linha sinuosa,
até ao dançante J
ao tenso K e
ao longo espojar pelos lençóis
no L libertário.

aí, sentirás ter chegado o momento de voltares ao texto
mover de M
a mão no mais verdadeiro mover com intenção
requebrado em esforçadas fugas
e negas N
a confirmar-nos, assim, na sintonia do movimento
em ovo, em O.

escreveres-me, sempre na seda mais tenra
para também eu desenhar a terna filigrana
que ainda agora se abre em meu peito
esse caudal que há alguns séculos foi desfeito
para nos virmos encontrar, aqui, no dúplice
espaço do olhar
escreveres-me, por mais estranho que seja o verbo
escreveres-me, por mais raro que seja o verso
escrever/mo/ -nos,
por mais imprevisto o silêncio
por mais raro o feliz adversário da rotina
a letra de aprender a viver, a ser o dia.

desde o P
abre o teu côncavo onde se aninham as tremuras mais fatais
pois um peito estremece com os espasmos do amor e da morte.
abre-me, sem concessões, o peito moreno onde me pouse
sem lugares para o Q
pergunta sempre redutora e vigarizada pela mente,
essa letra R
que tens de amansar para que não rase a volúpia da
dança em S.
escrevamos o aceder profundo à plenitude
quando o T configura a nossos corpos em templos
quando o U inicia a vibração astral
quando o V intensifica a fusão final
até ao alastrar das nossas peles
no cingido X
variável instante da totalidade
até adormecermos, confiantes,
entregues em Z
ou vazio absoluto
pois um corpo em entrega, como o seu peito
estremece com os espasmos do amor
e o espasmo do amor é, na vida,
a passagem ao infinito mais próxima da morte.


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maria toscano ©
Coimbra, Casa Verde, 25-28 Abril2013.

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